Santo Agostinho, Bispo, Doutor da Igreja (354-430)

Breve Biografia, da obra «Santos de cada dia – Maio, junho, julho e agosto», Secretariado Nacional do Apostolado da Oração – 4ª edição, revista e atualizada por António José Coelho, S.J., Editorial A.O., Braga 2003 (páginas 460-467).

Santo Agostinho, ornamento da ordem episcopal, um dos mais brilhantes astros do orbe cristão, e tão distinto entre os doutores da Igreja, nasceu em Tagaste, cidade da Numídia, em África, no dia 13 de novembro de 354. Foi de família honrada, e ainda que Patrício, seu pai, não era cristão, sua mãe, Santa Mónica, ganhou por tal forma o coração do marido por sua mansidão, por seu sofrimento, paciência e virtude que obteve que toda a família se fizesse cristã. Não exercitou pouco a virtude e a paciência de sua santa mãe a inquieta e buliçosa infância de Santo Agostinho. Pela vivacidade extraordinária do seu génio e pela veemência de suas paixões, era pouco dócil. A mesma facilidade que tinha em compreender tornava-o frouxo e descuidado em estudar. A sua paixão dominante era o amor da liberdade e dos divertimentos, não podendo tolerar nem freio nem sujeição. Não poupava a virtuosa mãe meio algum para lhe dar uma educação cristã. Tinha-o alistado entre os catecúmenos quando caiu perigosamente enfermo e se viu às portas da eternidade. Ele próprio pediu então o baptismo; mas, melhorando em seguida e desconfiando todos de suas más inclinações, teve-se por conveniente diferir-lho até que, com a madureza da idade, melhorasse de disposição. Logo que aprendeu a ler em Tagaste, enviaram-no a Madaura, cidade pouco distante, a estudar gramática e letras humanas. Imediatamente se enamorou muito das fábulas e de todos os vãos delírios da antiguidade profana.

Cedo começou a sobressair entre todos os condiscípulos pela superior valentia do seu engenho, distinguindo-se particularmente no exercício da eloquência.

Deram a seu pai informações tão vantajosas da sua rara compreensão e extraordinários talentos, que aos dezasseis anos de idade o retirou de Madaura e o enviou a Cartago, para que ali continuasse os estudos. Mas, enquanto dispunha a viagem para aquela cidade, demorou-se um ano em Tagaste sem se aplicar a coisa alguma, em casa de seus pais; e neste tempo, fazendo os seus costumados estragos a ociosidade, entregou-se sem freio a toda a casta de dissoluções. Aflita em extremo, a piíssima mãe fazia quanto podia para que o filho se emendasse. Mas, nem rogos, nem amorosas repreensões, nem salutares conselhos faziam impressão em um mancebo perdido, a quem tudo dissimulava a excessiva indulgência de seu pai. Passando a Cartago, ainda mais desaforadamente correu pelos excessos da lascívia, fomentada por perversas companhias e pelos espectáculos profanos, a que era violentamente inclinado. Contudo, no meio de tão grande desordem, como não podia apagar do seu coração aquelas impressões, que nele tinham gravado as primeiras lições cristãs de sua virtuosa mãe, pedia a Deus, de onde a onde, a dom da castidade, mas com receio de que se lha concedesse. Deleitava-se muito em ler as obras de Cícero, nas quais só o desgostava, como ele próprio disse, não encontrar o nome de Jesus Cristo, que se lhe gravou na alma desde os mais tenros anos. Como a desordem dos costumes conduz quase sempre à irreligião, caiu em todos os erros dos maniqueus.

No entretanto, mais e mais aflita, chorava Santa Mónica amargamente dia e noite diante do Senhor, pedindo-lhe sem cessar que tivesse misericórdia da alma dele.

Sendo já Agostinho a admiração dos sábios pela perfeita compreensão de todas as obras de Aristóteles e por sua celebrada eloquência, ensinou retórica em Cartago aos vinte anos de idade; e crescendo nele a ambição com o aplauso, resolveu passar a Roma. Por mais que fizesse, não pôde ocultar este desígnio à sua piedosa mãe, que tinha vindo a Cartago para trabalhar mais eficazmente em convertê-lo. Quis seguir Agostinho; mas este desembaraçou-se daquele estorvo com um artificioso engano. Aconselhou-a a que passasse a noite em oração na capela de S. Cipriano, que estava logo ali perto do porto; e enquanto a mãe se achava assim entretida, fez-se à vela. Hospedou-se em Roma em casa de um maniqueu, onde caiu perigosamente enfermo; mas nem por isso se converteu. Professou nesta cidade a retórica com maior aplauso ainda do que em Cartago, ao tempo em que o magistrado de Milão escreveu ao prefeito de Roma, pedindo-lhe que lhe enviasse um retórico hábil e distinto. Pouco demorou a escolha; Agostinho foi preferido a todos os outros. Logo que chegou a Milão, foi visitar o bispo Santo Ambrósio, cuja fama era grande em todo o mundo. Recebeu-o com tanto agrado, que começou a ganhar-lhe o coração; assistindo depois com frequência aos sermões do santo prelado, sentia renovarem-se em sua alma todos os remorsos da consciência.

Já havia tempo que, tendo confundido a Fausto, o mais famoso dos bispos maniqueus, em uma conferência pública, professava a seus erros um grandíssimo desprezo, e andava muito desgostoso com tal seita; mas as relações ilícitas que tinha com uma mulher, de quem tinha tido um filho, estorvavam-lhe a conversão, não obstante estar persuadido de que só a religião cristã era a verdadeira. Nestas circunstâncias, chegou a Milão Santa Mónica, resolvida a não abrir mão da empresa até alcançar de Deus a conversão do filho, ajudada agora por Santo Ambrósio. Pareceu a esta santa mulher que era conveniente casá-lo para o tirar da má vida. Consentiu Agostinho em se separar, mandando para a África a mulher com quem vivia amancebado, a qual passou o resto de seus dias na penitência. Entretanto, como não cessava a graça de solicitar interiormente o coração de Agostinho — já pelos conselhos de sua mãe, já pelas conversas e sermões de Santo Ambrósio — teve desejo de uma conferência com um presbítero, chamado Simpliciano, que instruíra o mesmo Santo Ambrósio. Este exortou-o vivamente a romper com os laços que o traziam aprisionado, e referiu-lhe a conversão de Vitoriano, em que tanta parte havia tomado o mesmo Agostinho, e que ele bem conhecia. Este exemplo impressionou-o tão vivamente que resolveu imitá-lo; mas era apenas uma meia vontade, que nunca passava à execução.

Estando um dia no quarto com o seu amigo Alípio, entrou Ponciano. Viu em cima da mesa as epístolas de S. Paulo, com o que se mostrou muito edificado, e como era muito cristão, tomou daqui ocasião para falar da assombrosa vida de Santo Antão, da multidão de mosteiros que povoavam os desertos e da admirável conversão de dois oficiais do imperador, que, lendo a vida deste grande santo, imediatamente voltaram costas ao mundo e abraçaram a vida cenobítica, entregando-se à oração e à penitência. Despediu-se Ponciano. Agostinho, vivissimamente comovido com o que acabava de ouvir, levantou-se e, voltando-se para Alípio, disse-lhe, em tom de voz que denotava bem o muito que a graça trabalhava em seu coração: «Que é isto, Alípio? Em que nos detemos? Levantam-se os indoutos e arrebatam-nos o céu? E nós com toda a nossa ciência andamos sempre de rastos pela terra? Pois quê! Porque eles foram mais sensatos do que nós, não ousamos nós sê-lo tanto como eles? E porque eles foram adiante, teremos nós vergonha de os seguir?» Dizendo isto, saiu do quarto arrebatadamente. Admirado Alípio de tão estranha mudança, foi-o seguindo até ao jardim. Ali sentou-se Agostinho e começou a desabafar em lágrimas e suspiros; mas, não tendo toda a liberdade que desejava à vista do amigo, levantou-se e, sem dizer nada, dirigiu-se para a parte mais solitária do jardim; lançou-se ao chão debaixo duma figueira, e desatando em uma torrente de lágrimas, começou a exclamar com voz entrecortada de soluços: «Até quando, Senhor, até quando terei de experimentar os efeitos da vossa indignação? Até quando deixarei sempre para amanhã o que posso fazer hoje? E se amanhã, porque não desde agora?»

Ao pronunciar isto, ouviu uma voz milagrosa que lhe dizia: «Toma e lê, toma e lê». Atónito com o que ouvia, levanta-se, volta a procurar o amigo, toma nas mãos as epístolas de S. Paulo, que tinha deixado ao pé dele; abre-as e depara com estas palavras: «Despi-vos da dissolução, dos deleites, das imundícies; mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da came no que toca a concupiscências». Mal acabou de ler a última palavra, logo se conheceu superior a todas as irresoluções.

Alípio, igualmente movido, quis ser seu companheiro na nova vida. Retiraram-se os dois, foram ter com Santa Mónica e referiram-lhe quanto se tinha passado. Foi inexplicável o gozo da santa matrona, especialmente quando ouviu a seu filho Agostinho que já não pensava em casar-se, mas no retiro e na solidão.

Para melhor se dispor a fim de receber o santo baptismo, retirou-se Agostinho a uma casa de campo perto de Milão, em companhia da mãe, do filho Adeodato e do amigo Alípio. Neste retiro compôs o tratado da Vida feliz, o da Imortalidade da alma, o da Ordem da Providência e os Solilóquios. Passava quase metade da noite meditando nas verdades da religião; continuava as suas orações até uma hora adiantada do dia, e encontrava nos salmos um gosto muito requintado.

Escreveu a Santo Ambrósio — que tinha manifestado a Santa Mónica um gozo singularíssimo por aquela conversão — dando-lhe conta da disposição em que se via e pedindo-lhe santas instruções a fim de se preparar para o sagrado baptismo. No princípio da quaresma de 387 voltou a Milão, onde foi baptizado por Santo Ambrósio, no sábado santo, em companhia do filho Adeodato e do amigo Alípio.

Contava então Santo Agostinho trinta e três anos. Elevado pelo baptismo à dignidade de filho de Deus, resolveu conservá-la toda a vida com a pureza de costumes e com o regramento de todo o proceder. Mas considerando que o espírito do mundo podia servir de embaraço aos seus intentos, tomou o partido de se retirar, resolvido a procurar na África aquele lugar que lhe pareceu mais a propósito para chorar os seus pecados.

Partiu de Milão em companhia da mãe e do filho, demorando-se no porto de Ostia à espera de embarcação. Aqui perdeu sua querida mãe, Santa Mónica; não pôde recusar o tributo de ternas lágrimas àquela que tantas havia chorado por ele durante a sua vida. Concluído o funeral de sua santa mãe, passou a Roma, com intenção de se demorar algum tempo nesta cidade; empregou-o todo na conversão dos maniqueus.

Não podendo tolerar-lhes o descaramento com que se jactavam de sua imaginária continência, para os curar e reduzir à fé, compôs então os dois livros dos Costumes da Igreja Católica e dos Costumes dos maniqueus; e quase logo a seguir o tratado do Livre arbítrio, contra os mesmos hereges. Depois duma estada em Roma, de quinze a dezasseis meses, embarcou em Ostia e aportou à África por fins do Inverno do ano 389.

Retirou-se a uma casa de campo com alguns amigos e por espaço de três anos entregou-se inteiramente a exercícios de devoção e de rigorosa penitência. Ocupava-se dia e noite em oração, no estudo da religião e da Sagrada Escritura. Jejuava com extremo rigor e macerava a carne com grandes e contínuas penitências. Neste santo retiro compôs os dois livros sobre o Génesis, e o que intitulou o Mestre, que é um admirável diálogo com seu filho Adeodato, a quem pouco tempo depois perdeu no mesmo retiro.

Contava Agostinho quase três anos de piedosas delícias, sossego e gosto daquela amável solidão, quando o obrigou a sair dela a fama da sua eminente virtude e da sua rara sabedoria. Certo grande senhor da cidade de Hipona, uma das principais da Numídia, bom cristão e grande amigo do nosso santo, instou com ele para que fosse visitá-lo. Consentiu em fazer esta viagem com a esperança de o mover e aumentar a sua pequena comunidade.

Achando-se em Hipona, o bispo da cidade, chamado Valério, propôs ao povo a necessidade que tinha a sua igreja de um presbítero virtuoso e sábio que auxiliasse o mesmo bispo nas funções do ministério pastoral. Como a sabedoria e a virtude de Agostinho eram bem conhecidas, não quiseram outro; mas era mister surpreendê-lo, porque o abismava até a sombra desta dignidade.

Um dia entrou na igreja, quando estavam juntos os fiéis, e no mesmo instante lançaram mão dele; e sem darem ouvidos nem aos seus rogos nem às suas lágrimas nem às suas razões, todos, a uma voz, começaram a clamar que o ordenassem de presbítero. O bispo Valério, que estava já de acordo, fez ainda menos caso do que os outros, de seus argumentos, e depois de lhe conferir as outras ordens, ordenou-o sacerdote

 

Tal foi a preciosa morte deste homem verdadeiramente grande, a quem os maiores homens da Igreja chamam o farol dos doutores, o modelo dos prelados, o escudo da fé, o arsenal da religião, a torre de David donde pendem mil arneses, o açoite dos inimigos de Jesus Cristo, a coluna da Igreja e o mais iluminado mestre da moral cristã.

Os sumos pontífices, e até mesmo os concílios têm feito magníficos elogios da doutrina de Santo Agostinho e de seus escritos. O Papa S. Celestino engrandece a sua fé, e chama-o, com outros pontífices, seus predecessores, um dos primeiros doutores da Igreja. S. Paulino apelida-o sol da terra; S. Jerónimo, o inimigo do erro; e Sulpício Severo, industriosa abelha que sustenta os fiéis com o mel da sua doutrina e com o ferrão transverbera de lado a lado os hereges.

Foi sepultado o seu santo corpo com toda a solenidade possível na igreja catedral. No ano seguinte apoderaram-se os bárbaros da cidade; puseram-lhe fogo, mas as chamas pouparam o sepulcro e a livraria do santo, onde estavam todas as suas obras. Os bispos de África, desterrados para a Sardenha, levaram consigo o santo corpo, e em seu exílio serviu-lhes de grande consolação aquele tesouro.

Ali esteve por espaço de 206 anos, até que Luitprando, rei dos Lombardos, o mandou trasladar para Pavia, no ano de 722, e naquela cidade se conserva ainda exposto à veneração pública.