Roncam os motores. O Niassa, adrede carregado durante dias, traz no bojo mais profundo toda a espécie de material, particular e oficial, além dum número considerável de urnas. Ronca e arranca, pela tardinha, faz-se ao mar, rumo a Lisboa. Beliches encavalitados albergam 3000 homens, 3 últimos batalhões que os 10 Boeing’s por dia, durante 15 dias, não conseguiram despejar em Lisboa. Fim da guerra na Guiné. 5 dias e noites, rom-rom-rom…
Falta o tabaco lá em baixo. Soldados mendigam aos oficiais (que senhores! Com marisco e tudo do melhor!) uma esmolinha do “bem” precioso que lhes faltava.. Dunhill! Aí vai! Todo contente! Encontrei-o mais tarde, por acaso. Falou-se do Dunhill.
Manhã clara e serena. Cais de Alcântara.
Do Diário da minha guerra:
“Pelas 5 h da manhã (aliás, 7, pois já estamos frente à costa portuguesa) fui despertado pelo David. Costa portuguesa à vista, com um nascer do sol maravilhoso. Pouco a pouco, as cobertas foram-se enchendo. Pessoal que despertava ao “cheiro” de Portugal.
Fomos andando e cada vez se delineava mais a terra “prometida”.
Pelas 8 e tal já se avistava a Ponte Salazar. Alegria em todos os rostos.
Pelas 9, o NIASSA ruma a Cascais onde entram os pilotos da barra e uma comissão de desmobilização. Dentro daquela balbúrdia, tratou-se de toda a papelada num instante.
Rumámos depois a Lisboa, onde atracámos às 11 horas, ao cais de Alcântara. O encosto foi demorado, enquanto na multidão tentávamos divisar alguém conhecido”.
Recinto cheio… de quem espera tão ansiosamente aquele regresso. Da amurada do navio, imponente na sua grandiosidade, fardas e mais fardas à espreita… Adivinha-se alguma cara conhecida perdida na multidão compacta. Mas não! É longe de mais!
A certa altura, um jornal no ar chamou-me a atenção. Lá estavam: o Manuel, a mãe, o José Trindade, as tias…
Cheguei.Cheguei.
Saí…
TERMINOU A
Minha guerra
13 de Setembro /1974
Faz hoje 46 anos!
13 de Setembro de 2020
Artur Oliveira
Alferes capelão
Mês por mês (são só 6 – tantos quantos durou a comissão militar, como capelão…) vai-se publicando, mesmo com os hieróglifos rabiscados então, a sensação duma inutilidade que a História impôs a todos aqueles que, obrigados a serviço militar, tiveram de cumprir tantos e tantos meses de fome, medo, sacrifício, inutilidade, imoralidade, chacina, tiros, barulho, castigos, imposições, cadeia, apreensão pelos “turras” (digam-no os presos de Conakri) em nome não sabemos bem de quê. Foram 13 anos com três frentes militares em terrenos, belos, sim, mas inóspitos e perigosos. Só a Guiné (é dessa guerra que trata este Diário), tinha na altura 20 mil homens em comissão, além dos autóctones que nos secundavam… Os milhares que lá perderam a vida, os milhares que vieram estropiados, os milhares que ainda hoje sofrem as consequências de meses e meses de luta e guerra… as lágrimas provocadas por saídas impostas… (Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!)
Este é apenas mais um “grito”, fraquinho sem dúvida, mas suficiente para fazer renascer em alguém que o ouça (ou o leia) aquelas sensações de morte e de vivência em esperança de escapar… de futuros melhores.
Um abraço a todos os que tiverem essa sensação! Obrigado!
O NIassa à nossa espera…
Em alto mar… Já se vê a costa? Está quase…
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