A música à procura de Deus

Abra a partitura do cântico
«Ó Senhor, eu creio» [com áudio]

Há 39 anos, João Paulo II em Fátima… Há 30 anos (1991)… e, de novo, no ano 2000, revelação do Segredo de Fátima (3ª parte …). Quantas recordações!

Entre elas, esta que aqui se transcreve, de 2004 – há portanto, 17 anos. Foi publicada no jornal «A Voz do Domingo», na edição do dia 23 de maio desse ano (domingo), e é a confirmaçao de como a música foi, e deve ser, um elemento “fundamental” nas celebrações litúrgicas de Fátima. 

[Obrigado a Paulo Adriano, do Gabinete de Informação e Comunicação da Diocese de Leiria-Fátima, por ter confirmado a data de publicação do testemunho de Manuel Borges Neto].

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RIO DE JANEIRO – No 13 de Maio do ano passado também eu era peregrino da Senhora de Fátima. Igual aos outros que ali tinham ido para rezar e lembrar o que a Mãe do Senhor viera pedir 86 anos
atrás, acompanhava atento o que os alto­-falantes transmitiam e também eu junta­va minha débil voz à multidão que canta­va e acompanhava com seus passos, os olhos e o coração aquele andor em que seguia a imagem da celeste e silenciosa Peregrina, a Senhora do Bom Caminho:

-Ave, ave, ave, Maria! Ave, ave, ave, Maria!

Até aí, nenhuma novidade para o crente habituado a es­se espectáculo de fé e para quem se esforça por atender ao pedido da Senhora para que “continuem a rezar o terço to­dos os dias”. Para mim, a novidade viria na hora da comu­nhão, quando o coro, escondido por trás da vidraça, can­tava versos apropriados mas de uma forma tão doce e en­volvente que, estou certo, nem os anjos fariam melhor. Le­tra e música soavam a meus ouvidos como mensagem dos Céus deixando meu pobre coração pouco menos que arre­batado:

Ó Senhor, eu creio. És caminho certo de infinito amor vou seguir-Te sempre. És a minha esperança, és o meu Pastor.

Uma pena que, com todos os inventos, o homem mo­derno não tenha ainda achado um truque capaz de fazer ou­vir ao leitor a melodia ao mesmo tempo que dá com os olhos na letra. Uma coisa linda, linda de a gente ficar ali sem querer ir mais embora. Afinal, dizem, não tendo co­mo ouvir a voz de Deus nem com Ele se comunicar, o ho­mem inventou a música. E essa do ó Senhor eu creio é uma delas. Aos autores da letra e da música, um abraço de reconhecimento e louvor.

Através da música, umas vezes é o meu ouvido que pa­rece escutar a voz d’Aquele que fala baixinho mas está sempre presente. Outras sou eu que, através dela, melhor me faço ouvir d’Aquele que ausculta o coração de seus fi­lhos. Experimente você também trancar-se no seu quarto e aí, a sós, no mais profundo silêncio, tente ouvir como convém o Kyrie da Missa dos Anjos (o mesmo que multi­dões sem conta têm cantado em Fátima) ou fixe sua aten­ção no que lhe diz uma Nona Sinfonia de Beethoven. Não me diga que não achou nada demais.

No fim das cerimónias, quando a imagem da Senhora já tinha sido levada de volta à Capelinha, não me foi difí­cil aproximar-me do coro que cantara ó Senhor, eu creio. Queria ver como poderia eu também possuir a partitura. Ainda que depois tivesse de arranjar tempo para ir aonde me fosse indicado. Pelo menos, não custava perguntar, e foi o que eu fiz.

– O padre (que o amabilíssimo regente me perdoe… nem o seu nome sou capaz de lembrar) vem ali, por favor, fale com ele – me aconselhou um cantor que vinha saindo do recinto reservado ao coral. E – oh, maravilha! – antes que eu me dirigisse a ele, não é que o próprio regente, ain­da com as vestes brancas da cerimónia, vem a mim e me saúda?

– Ó Borges Neto, tu, por aqui?

Surpreso fiquei eu. Antes de lhe fazer o pedido, quis sa­ber como ele me conhecia. Meu Deus, este mundo é mes­mo pequeno, constato mais uma vez. E o final da história é que no mesmo instante tive em minhas mãos a bendita partitura. O papel com a música ó Senhor eu creio, creiam, foi das coisas mais preciosas que carreguei na bagagem, de volta ao Brasil. O padre meu amigo – a quem abraço fra­ternalmente e dou um viva reconhecido – nem imaginar pode quantas vezes tenho cantarolado em casa essa músi­ca. Só espero que a minha mulher não tenha enjoado de tantas vezes me ouvir. Ainda se eu tivesse a voz dos can­tores da Cova da Iria!

Quanto mais me aborrecem os barulhos deste mundo – menção honrosa para os ritmos de rock e suas múltiplas e enfadonhas variantes – mais me refugio na música que nos vem do passado e mesmo do presente mas que tem me­lodia, harmonia e arte. Pouco depois que cheguei ao Bra­sil (1961), descobri um programa radiofónico dirigido por um monge beneditino – meu inesquecível mestre de can­to gregoriano que todos os domingos ia aos ares para de­leite dos meus ouvidos e glória do Senhor. O religioso já morreu, mas não o programa. Outro padre o tomou a si e, sempre que posso, não deixo de escutá-lo.

São músicas seleccionadas e comentários sóbrios, coi­sa muito boa para começar bem o domingo. Músicas feitas com arte e que o tempo não deixa envelhecer. Músicas que nos enlevam e elevam até Deus. Dizem bem com o título do programa: Som infinito. Depois que o locutor o anuncia, vem ainda o subtítulo: A arte da música à procura de Deus. Tudo a ver, não acha, amável e paciente leitor?