14. Memorial da escravatura...

E depois… rumámos ao Cacheu. Mais um dia dedicado à SOLIDARIEDADE. Segunda feira, com o tempo quase a expirar. Dia em pleno, a aspirar belos ambientes de cultura e educação, por dedicadas irmãs, de diversas nacionalidades, que, na sua vocação, descobriram que dar-se é mais que dar e, por isso, em terras inóspitas e de contrastes étnicos e espirituais (reina a religião animista, feita de feitiços e tradições contraditórias, antagónicas e às vezes bárbaras), aí  encontraram a realização pessoal e comunitária que, do nada ou do muito pouco, jorra em simpatia, carinho  e entrega generosa, em favor de crianças que ao seu viver podem começar a dar o nome de vida digna.

Uns solavancos inusitados, por falta de alcatrão ou por lombas rudes, incómodas, e mal sinalizadas, faziam saltar uns “ais”, logo afogados em gargalhadas estridentes a denotar boa disposição. Estávamos por tudo, habituados ao “entaçamento”, à dureza dos bancos e à estreiteza do espaço para mexer as pernas… Mas, olhando pela janela, íamos admirando a paisagem: tabanca aqui, tabanca ali, mercado de rua, quase contínuo, à mistura com porcos e galinhas, cachopos, muitos cachopos, ali uma banca com frutos de caju, além outra de laranjas descascadas, bananas, batatas, tubérculos, mandioca, sacos de lenha e de carvão, empilhados à espera de comprador ou transporte. Gente, muita gente, movimentação frenética, algum tráfego com carrinhas apinhadas de gente.

As “ânsias” do Zé Ricardo, de olhos esbugalhados à procura, foram satisfeitas muito a custo, quando, junto a um majestoso poilão, outro a apodrecer jazia como monstro derrubado em amontoados de lixo, a população de Có deambulava num mercado meio rústico mas recheado. Finalmente Có! Apeámos. Arma aperrada (máquina fotográfica, claro), era vê-lo à procura do trilho que 50 anos separavam numa memória que foi vida ali durante 2 anos. Trilho acima, massas de capim dum lado e doutro, não dava com a orientação que a memória quase esquecera. Informação recolhida fez-nos penetrar mais na mata. Era mais além, depois dumas tabancas infectas… e mal situadas. Era ver o apontar da “arma” a uns resquícios de militança que, em espaço pleno, e na altura cuidado, acolheu anos a fio. Oi! Ali está ainda resto da estrutura metálica do depósito de água! E sai um disparo. Olha ali o arame farpado, um poste de cimento afogado em capim, mais além isto, mais além outra coisa… resquícios. Era um júbilo memorial de alguém que ali perdeu muito do cabelo que a cabeça já não exibe. Mais foto, mais recordações, deixámos Có. O reviver do Zé Ricardo deu alma a mais uma caminhada.

A caminho de Canchungo (Teixeira Pinto, se dizia então), corredores de morte a serem apontados a dedo, visitámos a Escola Criança Esperança. Magnificamente cercada e muito bem cuidada, é uma escola de acolhimento e formação de crianças das redondezas. Verdadeiro oásis de formação e cultura. Foi belo ver aqueles pequenitos, em formação guerreira e tradicional, vestidos a rigor, a demonstrar as características dalgumas tribos da Guiné. Marcha e sapateado, atitudes guerreiras, guizos e espadas, folclore tradicional. Que encanto! Que magia! As visitas tiveram direito a uma manifestação infantil da cultura autóctone. Passámos por Canchungo, visitámos a igreja, onde anos a fio foi missionário o oureense franciscano Zé Henriques, da Cacinheira, o tal que, por uma boca infeliz no curso de capelães, em Janeiro de 1974, foi castigado, adiado na promoção a oficial. A estrutura do curso de então, o 10º, muito característico pelo ambiente que já estava a fervilhar, foi o único que despromoveu 3 dos aspirantes capelães, por “chumbo no curso”. A revolução do 25 de Abril resolveu o castigo. Se não, seriam incorporados como furriéis, para maqueiros… [era o 8º nome na lista desse curso]

Fomos almoçar ao Cacheu, numa esplanada à beira rio. Lá está em saliência o “MEMORIAL DA ESCRAVATURA”. Era o porto de chegada e posto de armazenamento dos escravos de toda a África para comercializar e carregar, como gado, para as Américas. Memorial meio desprezado, mas guardado, onde a revolução guineense houve por bem guardar empilhadas algumas das estátuas do tempo colonial. Que desprezo, que memorial!  Almoço à beira rio preparado pelo amigo Pereira, um português ali sediado e que serve de apoio à Fundação que para ali faz canalizar muito do material adquirido em Portugal. É o Zé Luís Ponte o grande animador. Desde biblioteca, centro de formação e tantas outras valências que ali estão de pé, graças a boas vontades dos que, um dia, contrariados, ali tiveram que servir um espírito colonialista que se sustentava da guerra. Parabéns aos voluntários. Bela colaboração em favor dos necessitados. O bichinho picou e o voluntariado generoso é uma bênção.

Foi um dia cheio de visitas, de memorial e de emoções fortes. E assim demos por terminada mais uma jornada de solidariedade e bem fazer.

AO (Alferes capelão)

“Poilão, grande árvore da Guiné, cujos frutos dão uma espécie de lã, que serve para encher colchões. O mesmo que árvore da sumaúma” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coord. de José Pedro Machado (Amigos do Livro, 1981 – tomo IX, p. 231).
A foto à esquerda foi retirada do site UASP, onde encontra este mesmo texto ilustrado por mais 35 fotos a que alude o texto. VER