Pés enterrados na poeira infecta, circulando para evitar os montes de lixo e excrementos dos animas a vaguear em liberdade pelas ruas, atravessámos uma rua (pouco) alcatroada e penetrámos no meandro das tabancas assoladas de lixo e pó, aqui e ali bancas improvisadas, primitivas, com laranjas descascadas, mancarra, peixe, sandes, e outros géneros, à disposição e à espera de quem apareça para comprar. Dois burricos, a cismar, atrelavam uma carrocita com alguns trastes. O Bispo, com a saqueta das alfaias debaixo do braço, distribuía sorrisos e saudações a alguns conhecidos que connosco cruzavam… Igreja cheia, a igreja da missão (Nossa Senhora de Fátima) acolheu um bom grupo de cristãos, de vestes domingueiras, bem apetrechados, com quem celebrámos festivamente o Dia do Senhor. Tentávamos trautear umas músicas em crioulo, magnificamente entoadas e ritmadas à africana, e acompanhámos o já gasto e quase esquecido espiritual negro: É o meu Corpo… tomai e comei… E no fim saiu com grande pompa o A treze de Maio, que o “Coral de Fátima”, nome com que o Bispo nos baptizou, entoou com entusiasmo e saudade…
Recebidos com muita amizade e carinho (portugueses e de Fátima!) o ambiente que era criado à nossa volta deixava-nos encantados. Alguma hipotética animosidade que poderíamos ainda supostamente imaginar de tempos passados, nada! Encantados, sem dúvida!
Um pequeno almoço substancial preparou-nos para uma manhã solidária com as religiões sedeadas em Bafatá. Iniciativa e organização do Bispo e da Paróquia, no largo fronteiro à Catedral, para a qual fomos convidados.
Descemos a antiga estrada que conduzia ao coração de Bafatá, CCS, messe de oficiais, refeitório dos soldados (que mais parecia um curral), a grande casa do gerente da Casa Gouveia. Olha ali, a varanda, olha a janela do meu quarto duramente 6 meses! Ó recordações! Ó emoções! E, ao pensamento, vieram noites de mosquitos, afastado com o produto que ardia toda a noite, exalando um cheiro característico, a ventoinha inseparável toda a noite a desandar mesmo por cima da cama, o ar de constipação com se acordava de manhã… a leitura gulosa de tantos aerogramas que iam chegando e os que se iam escrevendo… ena tantas emoções!
Olhos arregalados a ver tudo ao abandono, estradas esventradas, lixo, muito lixo, abandono, nem o cinema, a piscina, o ringue de jogo, a casa do Libanês, a própria casa de Amílcar Cabral (hoje museu), a estátua do jardim, as arcadas, tudo a cair aos bocados, um resto de mercado livre no meio da poeira, e as margens do Geba, onde se passavam boas tardes de lazer, de viola na mão, e se consumia o tempo de quem nada tinha que fazer. Depois do 25 de Abril, o desnorte da política nacional provocou uma ânsia, uma espera de negociações, passaram as operações militares, uma insegurança, uma bandalheira que só se afogava numas cervejolas e no deixar correr o tempo, até que viesse a ordem de cima, que só chegou em meados de Agosto: “Todos fora da Guiné até 10 de Setembro!”
A hora marcada aproximou-nos da Catedral em cujo átrio fronteiriço, debaixo das árvores, umas cadeiras, uma cátedra, numa aparelhagem sonora o Pároco apresentava a sessão: encontro multi-religioso em que intervieram os católicos, os muçulmanos, os evangélicos e os animistas, além das autoridades políticas num misto de entendimento, de pregação, de apelo à unidade, com discursos inflamados e bem feitos. Unidade sem dúvida! Também a nossa comitiva foi interpelada para dar o seu contributo.
De tarde, uma visita a Capé. Quinta enfronhada na mata que, em mãos de particular, sempre foi considerado um oásis, de plantação de banana e cana de açúcar e sua exploração (já assim era há 40 anos) e outras produções, e também oásis de paz (sabe Deus porquê!) em terreno cem por cento operacional, como era considerada toda a Guiné. Serviu, e ainda apresenta sinais visíveis, agora em crescente abandono, (é a crise) como “ressort” internacional para receber caçadores ricos e apaixonados de caça. Há fotografias de grupos portugueses a exibir fartas caçadas, que rumavam à Guiné para lazer, safaris empolgantes e outras actividades… Visita guiada às diversas valências duma quinta que, de próspera e luxuosa em tempos favoráveis, vai esquecendo o fausto e a pompa, porque tem pouca procura. E para lá chegar? E regressar? Nem as piores picadas do tempo da guerra! Desengonçada e quase a virar-se como em precipício, a carrinha saltava e fazia saltar, tudo rangia, a carrinha e nós, ai vértebras, ai coxas, ai nádegas, ai joelhos! Que martírio! Valeu a pena, mesmo assim, para ajuizar como a guerra tinha os seus oásis, apesar de tudo, sabe-se lá porquê? Passámos ainda pela Apicultura.
Foi Domingo em Bafatá, muito diferente de outros que ali se passaram em tempos idos.
As visitas à Missão, muito frequentes, aliviavam o stress, a conversa com os missionários substituíam o fardo da carga dum ambiente militar, estático e funcional, quantas vezes, porco e indigno. E uma bebida fresca ou uns mangos fresquinhos e saborosos ajudavam a serenar o espírito, sempre alterado pelo ambiente de guerra que acabrunhava.
Foi um bom Domingo em Bafatá!
AO (Alferes capelão)
Outras duas imagens de Bafatá, da época, fixadas em película de diapositivo, manifestando as marcas do tempo