15. Peculiaridades e algumas estórias

1. Porquê?

“Sabem que não vão fazer a comissão por inteiro?” Petrificados pela magistralidade da frase, atirámos de sopetão: “O quê, sr. Bispo?” (Brigadeiro, Bispo das Forças Armadas, de quem nos despedíamos na ida para a Guiné. Éramos dois). 7 de março de 74, aí pelas 16 ou 17 horas. “Não posso dizer mais nada! Vão lá!”  Saímos, com a frase a martelar nos ouvidos.

Fomos… 8 dias depois a “Intentona das Caldas”… Mais mês e meio, o “25 de Abril”!

Fui. Convicção? Nenhuma! Plano pastoral? Oh!… Medo? Era de cortar. Em rendição individual. Que ambiente me foi dado viver! A juventude e alguma perspicácia não deixaram abandalhar, graças a Deus.  E foram só 6 meses: 2 em ambiente de guerra e 4 em expectativa, num misto de incerteza e bandalheira generalizada. Fuga apressada e fugaz… 13 de Setembro.

42 anos depois… foi bom aterrar em Bissalanca. Tudo o que estava “assolapado” em recordações mórbidas e longínquas… foi bom. Paisagens esquecidas, a vogar nas brumas da memória, calores e suores de ambientes doentios, poeiras e cheiros nauseabundos, lamas e sujidades, licas e micoses, melgas e malárias, bailavam na mente que olhos esgazeados despertavam. Foi bom! Foi bom recordar.

2. Vou terminar.

O que as crónicas exibem é uma experiência única! Está aí um repositório de sentimentos, a maior parte deles pessoais, recordações entrecortadas de reflexões actualizadas, sentimentos velhos, medrosos e execráveis, alguns já com bolor, rejuvenescidos, tornados visíveis em locais sinistros que o medo adensava. Nomes que a memória, mesmo o sonho, matraqueavam: Cambajú, Cancolim, Canquelifá, Pirada, Burumtuma… Percorra-se o Abecedário… Para quê?  Quem aproveitou? Quem se aproveitou?  Foi vida, agora só memória. Mas a memória também é vida. Aí fica o testemunho.

3. “Quase…”

Bispo de Bafatá. Tivemos a dita de sermos recebidos, humilde mas principescamente, na Cúria de Bafatá, instalada depois da criação da diocese, no Colégio das Franciscanas, mesmo juntinho à Missão do PIME, onde simpáticos velhinhos missionários recebiam com carinho os capelães militares ali sedeados. Hoje, o ambiente é igual: um bispo de sotaque brasileiro e simpatia e carinho q.b., da mesma raiz, nos acolheu e acompanhou.

Contava com humor: «Quando vim para Bafatá, 94, se bem retive,  mesmo ao lado, Bambadinca (na guerra, sede de um grande batalhão), era uma “quase paróquia”, servida por um ancião muito idoso. Morreu. Como missionário de Bafatá, fui eu que tomei conta com o título de “quase pároco”. Eleito Bispo de Bafatá, elevei Bambadinca a paróquia, tirando o “quase”. Passei a ser pároco, deixando de ser “quase”, onde o fui por “quase” dois anos.» Humor e simpatia. Assenta-lhe muito bem. Obrigado.

4. Aquela Procissão dos Ramos!

Não havia burros nem capas estendidas pelo chão. Talvez uns porcos e umas galinhas a fugir, espavoridos. Mas não desmereceu da procissão de Jerusalém, e de muitas outras.  Em nada destoou a singeleza e a dignidade duma procissão pelas estradas poeirentas e esburacadas, da Missão à Catedral. Ramos de palmeira, muitos; mas raminho de oliveira, levado de propósito de Fátima, foi a bandeira do Bispo na procissão. Não sabiam o que era, mas explicou-se: como no caminho de Jerusalém.

Na homilia, o Bispo num crioulo simples, mas acolhedor e perceptível, convidou os “malandros” a arrependerem-se e a pedir perdão. (“Pecadores”, em português lídimo). As crianças, a rodos, acotovelavam-se muito sossegados, dando um ar de juventude entusiasta, com cânticos ritmados e alegres. Foi belo! Procissão e missa inesquecíveis. Isto foi no 2º turno, já anteriormente referido.

5. Um saco de arroz.

O nosso BB, Boaventura Baptista, vibrou todo o tempo. Como uma corda de viola à solta. Os balões, os rebuçados, as bolas, os chocolates, todo o material que lhe foi possível ensacar… era um mãos largas, sobretudo nos ranchos de criançada, a apanhar guloseimas.

Um táxi pára perto duma tabanca e descarrega um saco de arroz. O Boaventura condoeu-se duma miséria que encontrou com os seus colegas numa das saídas em Bissau e não teve meias medidas: Um saco de arroz! E não se esqueça Portgall, onde viveu 2 anos, e que revisitou com muita saudade e muitas benesses em favor da escola e doutras estruturas. Bem hajas, Boaventura!

6. A máquina do Gaspar

Amiúdes vezes, a carrinha era interceptada, por questões de controlo policial.

Debaixo dum mangueiro, uma mesa, 2 polícias sentados, muito senhores do seu papel, e um outro, a inspecionar o tráfego. Mostrados os documentos, a carrinha nunca mais arrancava. O Gaspar, por uma porta aberta, teve a ousadia ingénua de apontar a máquina fotográfica à mesa das autoridades.  Confisco imediato!  É crime, gritava o polícia. Podia metê-lo atrás das grades. “Mas… apaga-se a foto, pronto! E o procedimento foi esse. Mas… máquina outra vez dentro da gaveta, na pasta. Dê-me a máquina. Que não! Que aquilo não se pode fazer…

Tempo passado, alguém se apresenta como o capelão da caravana, que estamos instalados na Cúria de Bissau, às ordens do sr. Bispo… Com quem temos de ir ter para recuperar a máquina? Com ninguém! “Aqui quem manda sou eu”!  Minutos largos de interlocução, de pedido, de rogo, de informação… Intervém outro: Olhe, eu sou advogado, conheço as leis. Era o António Agostinho. Tem de haver alguém superior a quem nos dirigirmos para resgatar a máquina. Porque torna, porque deixa… Não, senhor. Eu sou advogado. Alguém nos deve livrar desta situação. Não! Aqui sou eu que mando. Não levam a máquina. O azedume, a apreensão no interior da carrinha já começava a perturbar o ambiente. E estamos atrasados para a nossa viagem.

Até que, a certa altura, o dito: “quem manda sou eu”, chamou-me à parte e… só três palavras: “Olhe. Eu tenho seis filhos!” Entendemos logo.

Mãos ao bolso, um maço de notas de francos africanos passado à socapa, resolveu em um minuto o que uma hora de dirimir teológico, eclesial e jurídico não resolvera. Algazarra na carrinha, de contentamento, partimos para o Cacheu.

7. Onde está o Padre?

Chegou a hora do Adeus. Horas aprazadas, malas carregadas, chegámos ao aeroporto com antecedência. Formalidades reguladas de antemão, facilitaram-nos a entrada. Aquelas entradas parecem um vespeiro: jovens, na sua maioria, a oferecerem os seus préstimos para carrear as malas para o interior, furadores de bichas de mão estendida, arrumadores para nos apresentarem ao embarque. Tudo legal, tudo bem, malas despachadas, check-in em ordem,  em fileira para o último controlo. Uma garrafa de água ainda levanta alguns “engulhos” que umas notas resolvem. Sacos abertos, revista aqui, revista ali, mãos estendidas para a gorjeta, avançamos lentamente.

A certa altura, uma guarda do aeroporto, fardada a rigor, boné condizente, as madeixas do cabelo a transbordar, com ar pesquisador, atira alto e bom som: “Onde é que está o padre”? O ouvido retém, o coração salta, levanta-se da fila um braço tímido… Aqui! Que será agora, desta vez? Aproxima-se lenta e solene. Era de baixa estatura, boné sobranceiro… “Olhe! Eu sou a esposa do Adelino!” O coração sossega, o sorriso alonga-se… Grande saudação!

O Adelino foi o nosso incansável guia, das duas vezes, que muito nos ajudou. É um catequista fervoroso, sabe sondar o terreno, conhece-o bem, de Bissau às ilhas Bijagós, amigo, contido e simples, dum português vernáculo e um crioulo assimilável, locutor duma rádio nacional. É um missionário nato. Já se falou dele noutras crónicas.

Hoje, o Adelino, frequenta o Instituto Politécnico de Leiria, a cursar Gestão de Ambiente, suponho. Que os amigos o ajudem e que Deus esteja com ele. Bem merece.

8. Termino como comecei. Obrigado.

Da 1ª Crónica: Decidi-me a mesclar “sentimentos e recordações de então” com as “emoções de agora”… ao pisar outra vez aquele solo ingrato, no ambiente, no clima, no medo da morte, fosse de bomba, tiro, fosse de malária ou outra peste qualquer para que os nossos corpos de europeus não estavam minimamente preparados. Só à força de “quinino”, em doses cavalares, e de muito álcool e tabaco, com que alguns afogavam mágoas inauditas.

É o objectivo destas simples crónicas, tantas vezes com aquele cunho pessoal, talvez demasiado pessoal, mas que exprimem sentimentos gerais, que ninguém entendeu, mas que dá para perscrutar como há missões espinhosas na vida que, nem com muito boa vontade, dá para sublimar.

Mistura-se a realidade dum “diário” vivido e escrito, às vezes em pormenores de ocasião, com a memória hoje tornada presente em locais de vivências estranhas em vidas de jovens, cheios de sonhos, mas contrariados por ventos que lhes eram alheios, e poucos benefícios lhes proporcionaram, a não ser prepararem a dureza da vida com a dureza duma guerra imposta, em condições que só os próprios são capazes de avaliar! [Ler o texto integral]

Em boa hora, a UASP (União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses) lançou esta iniciativa que não só espicaçou a “memória”… etc.”

OBRIGADO!

AO (Alferes Capelão)

Esta galeria mostra fotos de então, bem conservadas, em contraste com a qualidade das imagens que poderiam ser recuperadas de coevos slides [suporte de papel é melhor do que camadas de soluções químicas sobre películas de plástico…] e que, por isso mesmo só muito parcimoniosamente foram publicadas neste blog.
Se quiser saber mais sobre o PIME, consulte estes sites
[1]   [2]   [3].